Abril manda

LUSO QUÊ? 16/04/2022

Em Abril chega a luz forte e poderosa. A claridade. A flora ganha fulgor visível. O enérgico cantar matinal dos passarinhos pousados nos ramos das árvores e flores do jardim para o qual aponta a janela do quarto ganha agora contornos mais evidentes e posso por isso escutá-lo com maior nitidez. Estou talvez mais atento ou mais sensível. Disponível? Cheira outra vez ao perfume da liberdade. Escavamos no passado. Destapamos. Brilha o tesouro. Quase cinquenta anos.

Nesta época do ano trazemos à ribalta, de novo, as caras das personagens que fizeram acontecer. Dos libertadores e também dos derrotados que outrora guardavam a liberdade fechada a sete chaves. É necessário continuar. É fundamental manter a memória. Ir fazendo a luta sem armas nem munições reais.

Recordamos eventos daqueles outros tempos. As datas, os dias e as horas. Os locais. Aquelas terríveis histórias de medo, de opressão, de horror e tortura. De ignorância e bondade. De obediência cega. De cegueira. Também de desassossego e de inquietação. De procura. De união em torno de um bem comum. De esforço e de foco.

Depois os tanques e os militares. Grândola Vila Morena. Mares de gente. Mais horas e locais daquele dia, do 25. Sorrisos e aplausos. Dia do triunfo de Abril. Cravos vermelhos. Mais e mais gente nas ruas. Esperança e júbilo. Vitória!

Eu não vivi essas odisseias (nem as terríveis pré 1974, nem as grandiosas do dia da liberdade ou as ondas posteriores), nasci em 1977 – LIVRE. Mas sei-as de cor. Esta liberdade que me veste e sempre me arroupou vem de trás. De antes de mim. Esta pele que me cobre e que desde que sou gente me outorgou ser livre tem nos seus poros outros. Nas suas camadas estão heróis e vilões, toda uma história de décadas que forjou Portugal. Teceu novas redes onde já se encontravam outras bem antigas, seculares, encerrando nelas inúmeras narrativas. E eu mamei desde bebé essas estórias. Escutei tantas vezes como o meu pai passou umas horas numa cela porque não se calou. Como não se podia dizer que as batatas estavam caras. Os livros e os discos proibidos. Ouvi vezes sem conta a minha avó Ana contar como a PIDE levava, a torto e a direito, de arrasto, pessoas do elétrico ou de qualquer esquina por terem dito palavras proibidas. E os exilados, os presos políticos. Os amigos do bairro e da escola que no seu olhar contavam, sem querer, as guerras coloniais e o horror dos que tiveram de fugir (mais as desgraças dos que lá estavam e lá ficaram).

Essas andanças não as vivi, mas sei que as recebi. Há seguramente em mim migalhas dessas aventuras e desventuras do “Portugal de Salazar” (¿haverá outra maneira de escrever isto sem transmitir a ilusão de que esse homem em algum momento possuiu um país?). Essa opressão, bem como a luta contra ela, habitam de certeza o meu sangue. E é por isso que eu, tendo sido sempre livre, me arrepio quando chega Abril. É uma sensação de agradecimento profundo pela sorte que tive e tenho. Aquela coisa de dar graças (que vai mais além de um fundo religioso que não possuo) aos que tornaram a liberdade possível, partilhar com os da minha geração uma espécie de frequência nossa (dos livres filhos de abril) e, em simultâneo, desejar ser capaz de continuar com os mais novos esta poderosa missão herdada.

“Vejam bem”…, a pouco mais de uma semana de celebrarmos o dia da liberdade é isto que me vem à cabeça. Eu que nunca soube o que é dela estar privado…

Na verdade, quando me sentei em frente ao teclado trazia outros planos. Ia falar-vos dos livros que ando a ler e a descobrir.  De novos discos que venho (re)descobrindo e de concertos que estão para acontecer. Das exposições que não podemos perder. Queria ainda focar atenções no grande ecrã do cinema e nas séries faladas em português. E emoldurar-vos algumas citações que andam em “loop” na minha mente como se fossem uma página web em que apenas temos de deslizar o dedo para cima ou para baixo. E os podcasts… há tantos, tão variados, tão necessários e estimulantes… tão maravilhosamente bons. Disto e de outras tantas coisas.

Era… Sim, eu ia falar-vos de tudo isso. Mas a liberdade tomou conta de mim e quis que vos falasse um pouco sobre ela. E não me importo nadinha. Tudo está bem e bem estará enquanto mandar a LIBERDADE.

Vejam e ouçam como A GAROTA NÃO, através da canção em homenagem a José Mário Branco, enaltece a “querida” liberdade.

Canção a Zé Mário Branco – 6:06


Convite para assistirem a este concerto de três amigos, três lutadores incansáveis pela liberdade. “3 cantos” juntou em palco, num momento absolutamente histórico, José Mário Branco, Sérgio Godinho e Fausto. Homenagem à luta!

3 cantos (2009) – 1:22:47


Nuno Veloso

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