Cercado

LUSO QUÊ? 27/06/2022

Prometo que este não é um texto que procure inocentes, nem culpados. Talvez seja unicamente um desabafo necessário, uma redundância, uma fuga cega, um calado grito de desespero que já não pode ficar mais tempo dentro, um chamamento, uma brisa de loucura, um banho de realidade, a vergonha queimando, a urgência de agir… Nem sei bem se se poderá chamar-lhe crónica. Deixarei que sejam vocês a decidir.

Ontem, com o telemóvel na mão, premi automaticamente o botão de “play”. Vi. Rostos negros, pretos. Suor, lágrimas e sangue. Centenas de corpos… uns em movimento e outros pausados. Amontoados, encaixados uns nos outros. Cores vindas de África. Esgares de dor, feridas abertas. Braços erguidos a custo, mãos abrindo lentamente os dedos. Onde estavam os sorrisos de orelha a orelha e o inato ritmo dançante? Seres humanos exaustos e entregues à sorte após uma luta desleal e desigual pela conquista de uma vida melhor. De uma vida digna. De uma vida. Um futuro?

Também observei a violência pura e em várias tonalidades. Eram outros olhos, agora. O desprezo e a raiva. Uniformes e capacetes.  Movimentos robóticos, a rotina vigilante. Homens atuando provavelmente sob o jugo de uma obrigatória desconexão mental capacitante para a desumanidade cometida. Pontapés e empurrões. A dor plasmada na sua escala graduada com todos os tons.

Ali, naquela imagem absurda, procurei “degrades”, deslizes entre as cores. Quis desfocar os olhares que me procuravam, exilar-me momentaneamente. Porém, a escala de cinzas abalara da cena, estava já submerso na escuridão e não havia escape possível para mim. Tinha de ver. Ver, olhar e processar aquilo. Como?

Fiquei ali naquele limbo momentâneo à procura de uma lógica, uma razão ou rápida explicação para que aquele horror tivesse realmente acontecido. Apeteceu-me, e quase cedi, encontrar as culpas e os responsáveis, alvos para onde apontar antes de disparar. Finalmente, a incredulidade e a falência da razão travaram-me, deixando-me a planar sobre a lamentável visão daquele fragmento de realidade.

Tanta poesia, quantas palavras poderíamos usar. Esquecemos. Andamos na nossa “vidinha” e não há tempo. E de vez em quando levamos pancada no lombo. A crueza pega num pau e zás, toca a acordar que já é de dia! Dói, mas nada que não tenha cura com gelo e um ibuprofeno.

O grande Godinho canta há vários anos que “isto anda tudo ligado”. Será que não andamos, mas é terrivelmente desligados? Uns dos outros. Cada um no seu carril, viajando paralelamente e sem permitir cruzamentos com as linhas dos demais.

Quantas Melillas mais?

Talvez esta imundice (in)humana tenha começado no dia em que se construiu o primeiro muro alto e tosco entre homens diferentes (não seremos todos “diferentes”, afinal?) para separar, segregar, dominar, cegar. E desde então continuaram a escavar-se fossos, a erguer-se cercas e vedações. Subsequentes arames farpados simbólicos ou literais que vêm acentuando a diversidade (sem prestar atenção à beleza que ela encerra) enquanto escavam ainda mais a desigualdade de pontos de partida, que resultam na criação de maratonas tão distintas e às quais muitos nem resistem para chegar a ver a linha de meta.

Bombas, explosões. Silêncios e hipocrisias. Guerra e dinheiro. Poder. Amar e matar… ou deixar morrer. Tudo isto leva dentro um pouco de nós. Pelo que fazemos e também pelo que não fazemos ou pelo que calamos e permitimos.

O mais provável é que isto que escrevo não sirva para absolutamente nada. Contudo, não posso deixar de perguntar-me se nós que descobrimos o fogo e a roda, fomos à lua e inventamos a internet, sim, nós que criámos línguas, que abraçámos, que inventámos incessantemente, que solucionámos, errámos e amámos, que voámos e navegámos sem parar, não seremos capazes de fazer algo inédito e inovador na próxima vez que nos apetecer ir comprar tijolos para começar a fazer um muro novo.

Nuno Veloso

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