Somos mistura

LUSO QUÊ? 28/05/2021

Editorial

Após uma sanadora pausa regressamos cheios de vontade de vos trazer novas “inquietações”. Mantemos a “gana” de continuar a mostrar, a promover e divulgar o que de bom se vai fazendo ou fez no âmbito da lusofonia e da língua portuguesa.

Reformámos o formato da publicação com base nas vossas opiniões e sugestões e também tendo em conta novas ideias que tínhamos em mente. Há novidades deliciosas. A partir de hoje o LUSO QUÊ? Será quinzenal, sexta sim, sexta não. Acreditamos que assim poderemos aprofundar melhor os temas e também dar-vos tempo para digerir calmamente as leituras e ainda ter tempo para investigar ou explorar os assuntos que mais vos possam interessar.

As secções “(in)Raizados” e “Discos Pedidos” são substituídas por duas novidades. No espaço “lusoqueamos” convidamos todxs os leitores a interagirem connosco partilhando vídeos próprios relacionados com estas coisas da lusofonia e língua portuguesa. Na secção “LQ? FM” destacaremos canções e artistas da nossa playlist, juntando o vídeo da faixa e um breve comentário alusivo aos autores e ao tema em concreto.

Nesta edição quisemos fazer alusão ao dia internacional da diversidade cultural para o diálogo e o desenvolvimento, celebrado no passado dia 21 de maio. Gostaríamos de dar especial enfoque à potencialidade que a lusofonia apresenta no domínio da promoção da diversidade cultural, sendo ela mesma uma viva representação desta. Pela sua variedade e abrangência, a cultura lusófona representa-se indubitavelmente como um poderoso veículo capaz de conduzir-nos rumo a um mundo diverso, tolerante e flexível. No fundo, resultamos de misturas e mesclas. Precisamos de dialogar, escutar, participando ativamente no desenvolvimento do nosso planeta A, já que não há versão B.

Como vem sendo nosso costume iremos apresentar-vos propostas diversificadas de material que aponta nesta direção de diversidade. Procurámos mergulhar objetivamente nos detalhes, as pequenas coisas, que isoladamente poderiam parecer dificilmente incorporar-se numa mesma cultura partilhada por tantos milhões de pessoas espalhadas por todo o globo.

Até já!

1. E agora… o corá

A música lusófona é um autêntico paraíso no que diz respeito ao sem fim de instrumentos que se tocam nos diferentes géneros e estilos existentes. Só no universo das cordas existe uma variedade incrível. Um dos instrumentos mais fascinantes, fortemente presente na música produzida no continente africano, é o corá. Falar-vos sobre ele é um desejo antigo que finalmente decidimos levar avante.

O corá é feita através de uma arte ancestral que se reflete num trabalho manual com uso de madeira e uma cabaça de grandes dimensões. É uma caixa de ressonância constituída por meia cabaça coberta com pele de cabra e um longo cabo cilíndrico com cordas sobrepostas em grupos. A sua versão tradicional conta com 21 cordas, que podem ser tocadas com os dedos indicador e polegar de ambas as mãos.

Como dissemos antes, trata-se de um instrumento maioritariamente presente em muitos países africanos, embora seja possível encontrar a sua presença em projetos musicais oriundos de outros continentes. A Guiné-Bissau é indubitavelmente um dos berços deste singular instrumento e é deste lindo país que têm surgido alguns dos melhores tocadores de corá do mundo.

Deixo-vos aqui um vídeo onde o Mestre Galissa, um verdadeiro especialista, nos transmite vários detalhes sobre os segredos do corá, quais as principais evoluções que o instrumento tem apresentado, como se pode construir um corá, como aprender a tocá-la, o que fazer para preservar esta arte e passá-la a novas gerações e algumas outras dicas valiosíssimas. Poderão também assistir à interpretação de pequenos trechos musicais em que o Mestre toca e canta.

Galissa – Mestre de Corá (9:50)


Finalmente, para que possam apreciar a belíssima e inebriante sonoridade deste instrumento (o seu efeito sonoro é absolutamente incrível quando combinado e integrado com outros instrumentos), algumas canções com dedilhados que vos vão fazer planar sobre as nuvens.

“Teiça” – Ernesto Dabo (5:36)


“I Korson di Kim” – Eneida Marta (5:10)


2.  Somos Zé

Vamos da Guiné-Bissau a Portugal num abrir e fechar de olhos para ficar a conhecer um dos ícones da caricatura e cerâmica portuguesa – Rafaelo Bordalo Pinheiro. Nascido em 1846 em Lisboa, foi um artista multifacetado tendo dividido o seu tempo e energia em várias ocupações. Trabalhou como escritor, desenhador, aguarelista, ilustrador, decorador, ceramista, jornalista… era um homem com interesse em muitas áreas. Queremos, no entanto, destacar a sua faceta de caricaturista político e social.

Revolucionou totalmente o estilo e a estética aplicados ao conceito de caricatura, usando um traço inovador. A adaptação da sua visão conceptual foi adaptada na cerâmica originando belas peças de uma beleza única. Encontram-se frequentemente elementos naturais como frutos, vegetais ou animais nos trabalhos de cerâmica inspirados na genialidade de Bordalo Pinheiro. No entanto, foram também as obras de caráter caricatural que deram uma maior visibilidade ao seu trabalho.

Na sua figura mais popular, o Zé Povinho, conseguiu projetar a imagem do povo português de uma forma simples mas simultaneamente fabulosa, atribuindo um rosto ao país. Ele continua a ser retratado até aos nossos dias e utilizado por diversos caricaturistas para revelar os podres da sociedade criticando de uma forma humorística os principais problemas sociais, políticos e económicos do país ao longo de sua história, caricaturando o povo português na sua característica de eterna revolta perante o abandono e esquecimento da classe política, embora pouco ou nada fazendo para alterar a situação. Atente-se na forma como se inscreve a expressão “toma” na figura acompanhando o gesto feito com os braços, aludindo a uma possível mensagem de rebeldia do povo contra os poderes instalados.

A RTP apresenta neste programa uma completa viagem pelo universo de um dos mais profícuos e completos artistas portugueses de sempre. Interessantíssimos detalhes sobre a sua vida e obra e também visitas ao museu com o seu nome (em Lisboa), à fábrica e à Casa Museu São Rafael (Caldas da Rainha). Não percam! Visita Guiada – Rafael Bordalo Pinheiro (39:40)

3. Batuquemos

E lá vamos de volta a África. Esticámos os braços, as mãos abertas, caminhámos a passos largos e chegámos a Cabo Verde. Vamos conhecer uma das ancestrais tradições deste belo país e da sua acolhedora gente. O batuque, batuku ou batuk foi em 2003 adotado pela UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade e representa um género musical e simultaneamente um género de dança cabo-verdiana.

No batuque participam as batukaderas e as kantaderas. As primeiras executam um batimento polirrítmico que é preenchido pela melodia vocal realizada pelas segundas, criando um todo musical de grande beleza. Como dança, o batuque tradicional desenrola-se segundo um ritual preciso. Numa sessão de batuque, um conjunto de intérpretes (quase sempre unicamente mulheres) organizam-se, havendo uma solista e um coro que desempenha a função de resposta, num cenário chamado terreru (não tem de ser um lugar específico, pode ser um quintal de uma casa ou uma praça pública). A peça musical começa com as executantes desempenhando o primeiro movimento, enquanto que uma das executantes dirige-se para o interior do círculo para efetuar a dança. Neste primeiro movimento a dança é feita apenas com o oscilar do corpo, com o movimento alternado das pernas a marcar o tempo forte do ritmo. No segundo movimento, enquanto as executantes interpretam o ritmo e o canto em uníssono, a executante que está a dançar muda a dança. Neste caso, a dança (chamada da ku tornu) é feita com um requebrar das ancas, conseguido através de flexões rápidas dos joelhos, acompanhando o ritmo. Quando a peça musical acaba, a executante que estava a dançar retira-se, outra vem substituí-la, e inicia-se uma nova peça musical. Estas interpretações podem arrastar-se por horas.

Vejam alguns exemplos desta incrível arte expressiva.

Batuco – Sima Nos e So Nos (ao vivo em Utrecht) (4:07)


Batukaderas Fidju Di Nhu Santu Amaru – Mãe (4:47)


Batukaderas Bandera – Homenagem a Amílcar Cabral (3:50)


Nem a rainha da Pop, Madonna, ficou indiferente a esta joia cultural tendo integrado o batuque no tema “Batuka” do seu álbum “X”(2019). Nesta fascinante canção a artista reúne kantaderas e batukeras e funde a tradição com a inovação da eletrónica. Inquietação resultante da época em que viveu em Lisboa e pôde absorver na primeira pessoa a cultura lusófona e as raízes africanas nela patentes.

Batuka – Madonna (6:01)


4. A alma não se pode prender

Nunca melhor dito. Vamos de África até ao Brasil, fazendo o mesmo percurso que fez a capoeira. Esta arte marcial surgiu no Brasil durante o século XVI, tendo sido desenvolvida por escravos africanos e seus descendentes nos quilombos.

A sua musicalidade é um dos aspetos que a torna única, enquanto arte marcial. Ela é várias coisas em simultâneo – desporto, cultura popular, arte e música – tendo sido considerada pela Unesco, em 2014, Património Cultural Imaterial da Humanidade.

É visualmente irresistível. Caracteriza-se por golpes e movimentos ágeis e complexos, utilizando primariamente chutes e rasteiras, além de cabeçadas, joelhadas, cotoveladas, acrobacias no solo ou aéreas. Hoje em dia há muitos milhares de capoeiristas espalhados por todo o mundo.

Ficam aqui dois registos em vídeo desta magnífica arte marcial, com a promessa de que voltaremos numa futura edição a este tema procurando aprofundá-lo mais.

Capoeira Brasil (2:55)


Roda – Mindinho e Valente (10:08)


5. Atarracha

E como hoje decidimos conscientemente andar num frenesim, vamos de volta a África. Vamos até Angola dar um pezinho de dança para terminar a nossa fabulosa viagem desta semana.

É neste belo país que ficamos a conhecer a kizomba. Trata-se de um estilo de dança originário de Angola, por vezes confundido com o zouk devido ao ritmo ser muito semelhante. A sua origem parece remontar aos anos 50, quando era comum dançar-se nas farras conhecidas como “kizombadas” ao som de ritmos tipicamente angolanos como o semba, o kompa ou o caduque.

Pode descrever-se como uma mescla de ritmos e de sabores, uma dança plena de calor e de sensualidade que propicia uma verdadeira cumplicidade e empatia entre os pares. É comum os pares usarem o termo “atarrachar” quando se referem ao ato de dançar kizomba. Tem evoluído muito ao longo dos anos e tem atualmente um número imenso de fãs em todo o globo.

Um vídeo com as melhores faixas de kizomba e outro com uma performance para que vejam a beleza e extrema sensualidade desta dança. Atarrachamos?

Kizomba Mix 2021 (56:58)


Isabelle & Felicien – Fusion Kizomba Roma 2018 (3:07)


Lusoqueamos?

Estreamos um novo espaço dedicado à interação com os nossos leitores. Nesta secção queremos partilhar, juntos, as descobertas lusófonas que cada um faz no âmbito do universo da lusofonia e da língua portuguesa.

Estás a aprender português como língua estrangeira? Leste um maravilhoso livro de um autor ou autora lusófona? Viste um filme que aborda um aspeto da cultura lusófona ou decorre em algum dos territórios em que se fala português? Conheceste alguém lusófono e queres contar-nos essa experiência? Estás ou vais viver num país lusófono? Descobriste uma bela canção e queres dançá-la connosco? Tiveste uma experiência gastronómica incrivelmente deliciosa em terras lusófonas?

Grava um vídeo (com a imagem em horizontal e sem exceder os 2 minutos) onde contes essa experiência. Depois faz-nos  chegar a gravação (por email para info@lusoque.es, usando google drive, wetransfer, etc) e nós publicá-lo-emos aqui. Partilhemos as nossas narrativas pessoais sobre a lusofonia, em português! As boas estórias não se podem perder!

LQ? FM

Esta secção é também uma estreia neste regresso! Vem, de alguma forma, dar continuidade ao que já se fazia nos “Discos Pedidos” dos números anteriores, embora com um foco ligeiramente distinto.

Tendo como pano de fundo a nossa playlist no Spotify, com o título “Luso Quê? – Sons da Lusofonia”, usaremos este espaço para ir destacando as novas entradas, as descobertas felizes, as canções preferidas pelos nossos seguidores e também as sugestões que nos façam. Dancemos e cantemos juntos!

“Nha Morninha” – Pierre Aderne/Sara Tavares

O ritmo e cadência da morna com um toque brasileiro. Ora em português, ora em crioulo, somos embalados pela bela letra e embarcamos com alegria na magia sonora. Um ótimo exemplo de “mix” cultural.


“Lisboa é assim” – Rodrigo Costa Félix

Um fado com saborosos laivos afro-brasileiros que salpicam a melodia com as suas especiarias, aromas e perfumes exóticos. A letra retrata a mestiçagem secular que caracteriza as gentes que fazem a capital de Portugal. Bom passeio pelas ruas “alfacinhas”.


Agradecimentos

Muito obrigado pela vossa colaboração e pelos “grãos de areia” lançados ao projeto:

  • João Antunes
  • Joca Marino
  • Nacho Flores
  • Pedro Sereno
  • Pilar Pino

O vosso espaço Queres falar connosco? Tens sugestões ou ideias? Há temas ou assuntos que gostarias de ver tratados? Queres colaborar com o LUSO QUÊ?? Estamos à tua espera de braços, ouvidos e olhos bem abertos! Escreve-nos