Será?

LUSO QUÊ? 30/10/2022

Será?

Vamos fazendo anos. Fazemos? Construímos de forma planeada as primaveras pelas quais vamos passando, passeando e semeando cuidadosamente. É assim? Damos, como se diz frequentemente nos dias que correm, uma e outra volta em roda do sol. Giramos? Fazemos anos. Como um dever, uma ordem, o devir ou diretriz de calendário?

Sabemos real e inequivocamente para onde caminhamos. Ou vamos, antes, dirigindo e definindo a rota com o carro já em marcha, em ponto morto, e decidindo em cada curva apertada, reta longa, buraco ou cruzamento e curva perigosa à direita, qual a melhor rota e que mudança engrenar? Aperta o cinto. Cuidado com o amarelo âmbar do semáforo a cair para vermelho…

Traçamos, planeamos escrevendo no bloco de notas, em cada momento, quem sobe connosco no comboio da vida, quais são as carruagens que o formam e as suas respetivas categorias. Ai é? Se calhar não dominamos todas as estações e apeadeiros, nem os penduras que vão entrando à socapa e sem bilhete. Mais os descarrilamentos, os alta velocidade atrasados e as bebedeiras no vagão bar. E ainda as mochilas às costas, as malas atabalhoadas que teimosamente não se deixam fechar, as trouxas apressadas e postas ao ombro…

Conhecemos como as palmas das mãos quem nos rodeia e faz parte da mobília do nosso coração. Será que antevemos todas as rachas na madeira, as quincas, riscos e arranhões no verniz que ainda estão por vir? E ainda os acrescentos ao anexo, as prateleiras montadas à pressa que ficam desniveladas na parede, os beliches e os velhos banquinhos de madeira para quem chegou sem avisar para o jantar?

Avançamos com as certezas absolutas, as convicções, os ideais, os projetos no bolso… bem guardados. Cerramos os dentes, apertamos os punhos, calamos o cansaço e como um dardo certeiro somos atirados para a frente porque de outra maneira não poderia ser. Não poderíamos ser. Tem de ser! Sempre se fez assim… Quiçá pelo meio abracemos a dúvida, a incerteza e o medo também. Ou caímos inevitavelmente na preguiça, na morna inércia, na cegueira, que nem rebanho teleguiado?

Saciamos a sede ancestral evoluindo e montando as pecinhas todas, os cacos do progresso. Procedemos criteriosamente ao estudo da escala (sim, tudo hoje em dia tem de ser escalável), para o mundo crescer até ao infinito. Sabedoria, dinheiro, poder, controlo… mais conhecimento, tecnologia e inovação. Educação? Empatia? Paz? Humanidade?

As coisas vão mudando de sítio e encontrando novos cantinhos onde instalar-se mais comodamente. Mais rugas, menos cabelo e os músculos a amolecer. Ouve-se pior, mas escuta-se acutiladamente. Tantos pares de óculos depois somos guiados pela visão periférica da experiência, da existência. Saudades da explosividade da juventude, do ímpeto e da espontaneidade. Mas agora temos o calo, novas cartas na manga, a sagacidade adquirida pela queda e também as dores nas articulações. Costas quentes?

Fazemos anos. Ganhamos idade. Passam os anos. Sopramos velas. Vivemos muitos, tantos, anos. Não sabemos nada. Nem sabemos os outros. Tentamos? Talvez esteja a exagerar… sabemos um pouquinho. Antecipamos as coisas que hão de vir, que estão sendo e chegando já, sem ter a segurança absoluta de nada. E enquanto vamos andando para a frente com a cabeça quase sempre erguida, tropeções e passos firmes pelo meio, concluímos que no final e afinal somos todos “apenas” pessoas vivendo entre pessoas, com pessoas, procurando saber ser plenamente só isso mesmo. Deveras?

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