As raízes

LUSO QUÊ? 16/02/2022

Esta semana, recebi com surpresa e muita alegria uma fotografia antiga muitíssimo especial. Foi mais uma das que voou pelo whatsapp a dentro e em milésimas de segundo veio aterrar no meu telemóvel.

Quem a mandava? A minha mãe! Conseguira uma rara imagem do meu avô, o seu pai, e rapidamente ma enviou. Está junto à Banda Filarmónica que o viu nascer, bem como à alargada prole de onze filhos e filhas, em Cabanas de Viriato (histórica aldeia do Distrito de Viseu, em Portugal e que como o nome indica serviu de assento a Viriato e ao seu exército durante as épicas vitórias e feitos que este realizou contra as tropas romanas durante o século II a.C.). Devo dizer que este homem, o meu avô não o Viriato, dedicou a sua vida ao trabalho, à família e, claro está, à banda filarmónica da sua aldeia. Participou na sua fundação e foi membro integrante da mesma até uma idade bastante avançada (creio que a minha enorme paixão pela música ter-me-á chegado também através dele e do seu exemplo de dedicação). “Sempre que ia tocar a alguma outra aldeia, vila ou cidade trazia os bolsos cheios de pequenas surpresas para nós: guloseimas, brinquedos…” – contou-me a minha mãe, recordando episódios deliciosamente bonitos da sua infância.

Podem vê-lo aqui (o primeiro da esquerda) com um semblante concentrado para sair bem na “chapa”, ele que foi sempre conhecido pelo permanente sorriso que dia sim e dia também, ostentava no seu rosto rugoso e queimado pelo sol do campo. Garanto-vos que o João “dos pratos”, como era conhecido por toda a gente, foi/é provavelmente o homem mais bondoso que conheci até hoje. Sei que sendo seu neto pode soar imparcial ou tendencioso, mas é realmente assim! Jamais lhe percebi uma expressão de desagrado, zanga ou mau humor. Era assim, alegre, feliz e ponto!

Recordar é viver! Claro que ao ver a fotografia vieram-me à memória toneladas de momentos, pessoas, sabores e cheiros e uma mão cheia de fortes emoções. Estavam de repente comigo os primos e primas a correr descalços em frente ao cruzeiro da casa familiar feita de pedra. As mulheres da família conversando e rindo enquanto preparavam um coelho para a cabidela que degustaríamos todos juntos ao almoço. As galinhas a cacarejar como loucas dentro da capoeira porque o galo não as deixava em paz. O meu avô trabalhando o vinho dentro da adega, junto às pipas envelhecidas, com aquele típico perfume da humidade misturada com o mosto no ar. A minha avó sentada junto ao forno a lenha distribuindo pão com chouriço pelas dezenas de netos e netas, os catraios que por ali andavam nas suas correrias e brincadeiras. Um carro velho que irrompia pela aquela curva da nacional, junto ao pátio, apitando repetidamente. Algum vizinho que passava e dava as boas tardes.

E depois veio a vontade, a urgência, de regressar lá. Àquela povoação onde tudo começou. Há muito que lá não vou e as últimas visitas foram fugazes e motivadas por partidas de familiares. Está a faltar regressar com tempo e paciência para caminhar pelas ruas empedradas, ver o que estava e já não está, também o que mudou. Mas sobretudo pisar as raízes que ali permanecem e visitar os poucos ramos familiares que ali se encontram instalados. “É incrível com certas pessoas e determinados locais podem ser determinantes e modelares mesmo sendo pinceladas rápidas no quadro da nossa existência”, penso enquanto me dou conta que durante a minha vida devo ter estado ali pouco mais de uma dezena de vezes.

Afinal de contas, (e é aqui que quero chegar) como bem se demonstra na celebração da “noche de los muertos” no México, podemos dar vida eterna às pessoas que recordamos. Se ou quando já ninguém nos lembrar, deixamos de existir. Talvez, tendo isto em mente, possamos começar ainda em vida a tratar de ser, fazer, sentir, partilhar, construir e amar de maneira a ir entrando na memória de quem é importante para nós. Desconheço a melhor estratégia para o fazer, mas estou certo que ser profunda e legitimamente bom, praticar a bondade para com o próximo, é uma das maneiras mais simples e direta de lá chegar. O melhor que nos poderá acontecer será dentro de muitos, muitos anos, haver alguém que nos veja numa foto esbatida pelo tempo e ainda antes de cheirar as memórias, sorria!

GNTK – Raízes 3:48


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