Cumplicidades afro-lusas
LUSO QUÊ? 26/02/2021
Editorial
Cumplicidades entre africanos e portugueses. África e Portugal. Séculos de História em comum, estórias que se entrecruzam criando arte e cultura, também tradições e identidade. Viagens, movimentos migratórios, intercâmbios, trocas, cruzamento, mistura, mestiçagem, partilha, aprendizagem e evolução. Sim, também os aspetos menos bonitos e bem duros que arrastam feridas com profundas raízes como o drama da colonização, a escravidão, os processos de independência, os conflitos políticos. Não! Não é desses que vamos falar. Vimos antes falar da beleza existente em projetos que evidentemente apontam para pontes culturais, aqueles que através do fascínio pela diversidade, pela diferença, pela mescla, apontam justamente o caminho da humanização através de novas construções.
Essa cumplicidade incrível realizada através do desejo de comunicação real, seria provavelmente bastante mais difícil sem uma língua comum a unir e juntar, a aproximar o que o oceano em tempos separava. Iremos dar um salto ao Portal da Língua Portuguesa para saber um pouco mais sobre o “Novo” Acordo Ortográfico e mais algumas coisinhas.
Em seguida daremos uma voltinha pela música de um poeta e músico, um artista singular e inovador, que nasceu em África, mas foi em Portugal que ficou para sempre ligado à génese e desenvolvimento do rap e hip hop. Boss AC está na área!
Neste número conheceremos também a fantástica estória de Rui Dias, alguém que na juventude pensava ser mestre da fast food e que, afinal, vem viajando por todo o mundo empregando a arte de bem editar vídeo e fazer entrar pela nossa casa e nos cinemas os melhores programas de TV e filmes.
Encerraremos com uma das maiores promessas musicais do momento, um guineense com uma sensibilidade inusual e que representa com mestria o sentir e pulsar da sua terra e da sua gente. Vamos dançar e cantar com Binhan Quimor.
Os (in)Raizados ficam mais uma semana em banho-maria.
Estreamos com muita alegria a secção Discos Pedidos!. O que é que os nossos leitores andam a ouvir?
Uma nota! Esta edição é dedicada a Pilar Pino – assídua colaboradora, apoio fundamental e constante fonte de inspiração para o projeto LUSO QUÊ?. Parte deste número e dos detalhes finais de maquetação foram feitos no quarto do hospital onde se encontrava devido a uma cirurgia programada (tudo correu muito bem e está já em casa, em recuperação).
Até já!
1. De acordo!
Conseguir chegar a um acordo ortográfico da língua portuguesa foi “o cabo dos trabalhos”. Essa vontade de unir e uniformizar a ortografia do idioma que se usava em distintas geografias lusófonas por tantos milhões de falantes tardou anos em materializar-se e só em 1990 se conseguiu chegar a uma versão final assinada por vários países: Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe Brasil e Portugal. É certo que ainda hoje há polémica e algumas feridas abertas em relação a este tema (com tomadas de posição mais ou menos extremas), o que é legitimo e era também expectável pela dificuldade de agradar a todas as sensibilidades envolvidas no processo. Deixemos isso de lado.
O que vos queremos mostrar é um projeto extraordinário (já com uns aninhos) que ajuda, entre outras coisas, a esclarecer as dúvidas referentes à aplicação do “novo acordo” – o portal da língua portuguesa. Sabemos que as novas gerações que aprenderam a língua materna já com o acordo em vigor não sentem grandes dificuldades neste campo, mas para os mais experientes na vida, aqueles que aprenderem português antes, há várias décadas, por vezes ao escrever surgem dúvidas ortográficas.
É portanto “um repositório organizado de recursos linguísticos (…) que pretende ser orientado tanto para o público em geral como para a comunidade científica, servindo de apoio a quem trabalha com a língua portuguesa e a todos os que têm interesse ou dúvidas sobre o seu funcionamento “. Está especialmente focado em vocabulário (uma base de dados gigante e muitíssimo completa) e, como se disse, no uso do acordo ortográfico através da ferramenta “lince”.
Vão lá espreitar e experimentar o potencial desta “pérola” linguística!
2. O “pai” do hip hop tuga
Os anos 90 foram uma época de ouro no que respeita a transformações, mudanças e evoluções artísticas e culturais em Portugal. Começou a sair-se ainda mais da casca. Quando pensamos nas formas de arte urbana como o grafíti, no surgimento da malta do skate, nos primeiros festivais de música, na transgressão dos pearcings, tatuagens e penteados marados, não podemos deixar também de pensar no rap e no hip hop que então despontavam. Houve um antes e um depois da mítica compilação RAPública do ano 1994 – trata-se de um disco que reuniu os primórdios do movimento rap e hip hop em Portugal e, claro está, o “chefe” já andava por lá.
Haverá certamente vários pais e mães deste “bebé” em forma de género ou estilo musical, mas inegavelmente há um nome unânime apontado por todos quando nos referimos ao nascimento e génese do hip hop em Portugal. Falamos obviamente de Boss AC.
As letras dos seus temas são incrivelmente pujantes e transmitem um processo de escrita preciso e fruto de tremenda dedicação. Poesia ritmada e com a métrica aguçada. As palavras combinam-se entre si de formas impensadas originando poesia viva, em movimento. Tocam-se assuntos abrangentes, procurando contar e falar sobre a realidade próxima – não se inventa ou ficciona, fala-se do que é, do agora, daquilo que acontece nas vidas das pessoas . É certo que a evolução de Boss AC como artista fez do “menino” um Homem, o que se nota na forma como foi escolhendo e selecionando o que tinha a dizer e também como dizê-lo. Sempre autêntico aos seus valores e princípios é, ainda assim, impossível não notar a crescente maturidade pessoal e artística que imprime na sua obra.
A musicalidade das suas canções apresenta-se através do seu estilo muito pessoal e próprio. Há samples, misturas e fusões com géneros musicais variados. Embora nunca seja igual, sabemos sempre que está lá a sua mãozinha… é o som do “patrão”.
Longe de pretendermos querer fazer aqui um relato aprofundado sobre este mestre do hip hop, deixamo-vos algumas faixas que vos dão uma breve ideia do percurso musical de Boss AC. Para descobrirem mais consultem o seu perfil no soundcloud.
A verdade (1994)
Andam aí (1998)
Baza, baza (2002)
Hip hop sou eu e és tu (2005)
A bala (2005)
Alguém me Ouviu (Mantém-te Firme) – 2009 – com Mariza
Tu és mais forte (2012)
Orelha Negra – Parte de Mim feat Boss Ac e Ace (2016)
3. Perdeu-se um mestre do hambúrguer…
… mas ganhou-se um excelente editor de vídeo e um grande aventureiro! É mesmo assim. Recentemente falámos aqui sobre o talento dos que através das câmaras nos fazem chegar belas imagens. Hoje vamos conhecer alguém que trata as imagens com arte, dando-lhes o formato necessário para que possam chegar à TV ou às grandes telas dos cinemas. Tivemos a sorte de poder conversar com Rui Dias e saber em primeira mão como se desenhou o trajeto profissional que o tem feito andar pelos 4 cantos do mundo.
Nascido em Lisboa, mas filho de Cascais, define-se como um cascaense no mundo cuja fonte de inspiração se encontra no Guincho, entre a serra e o mar. Não é portanto de estranhar que em cada prémio que o Rui recebe no seu discurso refira sempre a vila de Cascais, o Guincho e o orgulho que tem em ser cascaense.
Cedo percebeu que a história e a arqueologia eram dois mundos complementários, que o fascinavam. Foi assim, sem surpresa, que se viu como universitário perseguindo esse sonho na Universidade Sorbonne, em Paris. Nessa época trabalhava na conhecida empresa dos arcos amarelos a fazer hambúrgueres. A sua competência indicava que cresceria rapidamente dentro da organização, começando a equacionar a hipótese de ir para os Estados Unidos e licenciar-se na Universidade do Hambúrguer. O caminho começava a definir-se.
Mas na vida por vezes nas situações mais banais e circunstanciais é onde se definem as rotas e direções. Foi o que aconteceu a Rui. Um amigo convidou-o para assistir ao vivo ao programa televisivo do momento em França – “Taratata”. Naquele dia, pela primeira vez tão próximo da ação em estúdio, mal podia imaginar que ia suceder algo imprevisto que modificaria a sua vida para sempre. Atuavam Jon Bon Jovi e Bob Geldof, sobre quem o enfoque do programa recaía nessa noite. Rui e o seu amigo, sentados entre o público, aguardavam impacientemente pelo início do programa quando um membro da equipa de produção se aproximou e lhe disse: “o nosso assistente está indisposto, poderias ajudar-nos?”. Meio atrapalhado e sem saber se era uma brincadeira, ripostou: “mas eu não percebo nada disso, é a primeira vez…”. Não o deixaram terminar a frase – “só tens de mover o cabo da câmara acompanhando o movimento para que não estorve”. Aceitou.
A partir daí foi tudo muito rápido. “Pai, quero desistir da universidade”… era o querias! Terminou não uma, mas duas licenciaturas na Sorbonne (a de História e a de Cinema e Televisão) e passou a fazer uns ganchos na televisão, abandonando de vez a promissora carreira na indústria da carne picada e das batatas fritas.
Deu os primeiros passos no Canal + e começou a desenhar um palmarés impressionante como editor de vídeo com participação em importantes projetos televisivos e cinematográficos que podem consultar no seu extenso e rico perfil publicado na web oficial da imdb.
Em mais de 25 anos de atividade foram já 18 os países em que trabalhou. Atualmente a sua residência já não é França, mas sim bem perto do seu Guincho apesar de passar mais tempo do ano fora de Portugal, pois a natureza da sua atividade e a abundância de solicitações implicam constantes viagens. Para este ano de 2021 tem trabalhos agendados em Angola, Moçambique, Canadá, Dubai e Qatar . No dia da entrevista, falou comigo desde África onde se encontra a desenvolver um aliciante projeto.
Para os que conhecem a história da TV em Portugal, poderá ser impressionante pensar que Rui foi responsável pela edição de programas tão marcantes como o mítico reality “Big Brother” (as primeiras edições), a famosa série “Morangos com açúcar” e o “5 para a meia-noite”, entre muitos outros. Tem também no seu portfólio inúmeros trabalhos no cinema e publicidade como “Les mots bleus” (2005), “En solitaire” (2013), “Pressure” (2015) “Can’t skip us, can’t skip Portugal” (2017).
Impossível prever que novas pérolas irá tramar ou quantos mais prémios, (já são dezenas e dezenas) irá Rui ganhar. Duas certezas, porém: este editor navegante continuará pelo mundo fora a criar magia colando as imagens para que nos chegue a arte através do ecrã e cumprirá um sonho antigo – regressar à sua bela vila de Cascais e poder fazer algo pela comunidade e pelos cascaenses, contribuindo para o desenvolvimento local através de formação na sua área e da realização de outros projetos aliciantes.
4. Cantar um povo
Há pouco mais de 40 primaveras a Guiné-Bissau via nascer Binhanquinhe Quimor ou, simplesmente, Binhan. Desde cedo demonstrou um forte interesse e especiais dotes para as artes, entre elas a música. Ainda na infância e adolescência, a participação no coro da igreja evangélica e também nos concursos de cantigas que se realizavam durante a campanha da apanha do arroz nas bolanhas deram-lhe boas fundições para o que viria a produzir anos mais tarde.
O seu nome foi começando a soar por todo o país e foi para Bissau, onde integrou vários projetos musicais de renome nacional – destaque para os Super Mama Djombo. É a partir daqui que começa a viajar por todo o mundo e vai fazendo amigos e estabelecendo contactos com músicos um pouco por todo o lado.
As suas canções falam de intervenção social, criticam o comportamento de alguns militares e políticos, contam o amor e exaltam a paz. São por isso temas que lhe valem a identificação com todo um povo. Binhan canta a terra, a sua gente e a nação guineense.
De momento conta apenas com um álbum publicado a solo – “Lifanti Pupa” (2017). Trata-se de uma obra fantástica onde os magníficos arranjos de cordas e os coros inebriantes tornam os temas absolutamente irresistíveis. Ritmos orgânicos e bem estruturados que transmitem a percussão natural desta geografia do globo. Destaque também para a mensagem unificadora, pacífica e de celebração do seu país, cultura e gente. A voz de Binhan transmite um calor e uma empatia impressionantes, numa frequência calma e com uma tranquilidade extraordinária.
Sabemos que está já a trabalhar num próximo disco onde seguramente se notarão influências vibrantes pelo facto de estar a residir em Lisboa há já algum tempo. Ficaremos bem alerta para ver que novas pérolas nos trará. Entretanto, desfrutemos de algumas das suas canções. Se quiserem descobrir mais sobre este fantástico artista guineense consultem o seu perfil no instagram ou o artigo que nos serviu de fonte para a reconstituição da sua biografia.
Lifanti calai
Guiné nha terra
Tudo na passa
N’ghâla Ndan
(in)Raizados
Esta secção está dedicada a contar as aventuras e desventuras, as peripécias e o quotidiano de pessoas fantásticas que nasceram em países lusófonos e agora andam pelo mundo fora fazendo pela vida, fazendo a sua vida e espalhando a língua portuguesa pelos 4 cantos do globo.
És ou conheces algum (in)Raizado sobre quem possamos contar estórias aqui no LUSO QUÊ?? Escreve um breve texto com esse relato (máximo uma página A4, aproximadamente 450 palavras), junta uma foto do(s) protagonista(s) e envia-o por escrito para o endereço eletrónico disponível em O vosso espaço. Se és daquelas pessoas que dizem não ter jeito para escrever, contacta-nos e nós ajudamos-te a dar forma à aventura que tens para contar – as boas estórias não se podem perder!
Discos Pedidos!
Hoje dançamos e cantamos com…
María Almela (Murcia)
“Trevo” é uma canção muito especial. Todas as pessoas espanholas que a escutam consideram que é maravilhosa, doce e cheia de sentimento. A primeira vez que eu ouvi esta canção foi numa aula de Design na Faculdade de Ciências da Comunicação na Universidade do Porto, onde vivi durante 6 meses. Mal eu podia adivinhar que esta seria a banda sonora de toda a minha estadia nesta bela cidade.
Foi o meu querido amigo Pedro que a descobriu e me mostrou. Para mim foi como um presente fantástico. Tal como ele, que é um dos melhores amigos que encontrei nesse caminho incerto que é a vida.
No final do meu Erasmus, eu fui ao Rock In Rio Lisboa para assistir ao concerto dos MUSE e foi uma surpresa pra mim quando comecei a escutar, ao longe, o Diogo Piçarra e Anavitória cantando juntos. A partir desse instante, Portugal e Brasil ficaram no o meu coração para sempre.
Trevo (tu) – ANAVITÓRIA featuring Diogo Piçarra
Marieta Freitas (Lisboa)
Há canções que nem nos lembramos bem quando começámos a gostar delas. Às vezes não são odes à escrita e composição, nem têm vídeos ao estilo de super produções. Este é um desses casos. Escolhi partilhá-la convosco simplesmente porque me deixa muito bem disposta sempre que a ouço. Pareceu-me razão suficiente!
Oração – A banda mais bonita da cidade
Nesta secção desejamos que partilhem connosco as vossas canções favoritas. O que é bom é para se partilhar! Podem contar estórias relacionadas com elas, quando as ouviram por primeira vez, quem ou que situações vos recordam, situações em concertos, etc. Como? Muito simples. Basta enviar-nos um e-mail para info@lusoque.es com o vosso nome e o local de onde nos escrevem, o título da canção e o seu autor/grupo/projeto e trataremos de a publicar junto ao respetivo vídeo.
Agradecimentos
Muito obrigado pela vossa colaboração e pelos “grãos de areia” lançados ao projeto:
- João Antunes
- Joca Marino
- Nacho Flores
- Pedro Sereno
- Pilar Pino
O vosso espaço Queres falar connosco? Tens sugestões ou ideias? Há temas ou assuntos que gostarias de ver tratados? Queres colaborar com o LUSO QUÊ?? Estamos à tua espera de braços, ouvidos e olhos bem abertos! Escreve-nos